Uma rápida entrevista com: Carlos AC Pedra (MD, PhD, FACC, FSCAI)
Sobre o entrevistado
- Diretor da Seção Médica de Intervenções de Cardiopatias Congênitas do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, São Paulo, SP, Brasil.
- Intervencionista do Hospital do Coração, São Paulo, SP, Brasil.
- Diretor do Congresso PICS (Pediatric Interventional Cardiology Symposium).
SOLACI: Quais são os resultados atuais das intervenções cardíacas fetais?
Dr. Pedra: Apesar de haver poucos centros que façam este tipo de intervenções, atualmente há 3 indicações de intervenções intrauterinas em cardiopatias congênitas: a estenose aórtica crítica com sinais de desenvolvimento de hipoplasia do ventrículo esquerdo; a atresia pulmonar/estenose pulmonar crítica com septo intraventricular intacto com sinais de desenvolvimento de hipoplasia do ventrículo direito; e a hipoplasia do ventrículo esquerdo com septo interatrial intacto ou com CIA muito restritiva.
O procedimento é muito seguro para as mães, sem relatos de complicações graves ou mortes. A taxa de perda fetal é de cerca de 10%. Complicações como bradicardia fetal e derrame são comuns e a equipe deve estar preparada para lidar com tais complicações.
Na estenose aórtica crítica é possível abortar a evolução para hipoplasia do ventrículo esquerdo em cerda 30-50% dos casos, dependendo dos critérios de seleção para o procedimento. É importante nos lembrarmos que é comum a necessidade de procedimentos intermediários (híbrido ou Norwood inicial) antes de conseguirmos a correção biventricular no fim do primeiro ano de vida. A reabilitação e o salvamento do VE começam no útero mas é necessário dar mais tempo para que essa câmara cresça. Na cirurgia biventricular, aos 10-12 meses, faz-se um remodelamento ventricular com ressecção da camada de fibroelastose do VE, plástica das folhas da valva aórtica, deixando uma pequena CIA de escape. Nos casos em que não se consegue uma correção biventricular, a taxa de sobrevida nos pacientes submetidos a valvoplastia intrauterina após o Norwood é melhor que nos pacientes nos quais não se fez nada.
Embora o procedimento de valvoplastia pulmonar intrauterina seja mais difícil do ponto de vista técnico, os resultados a longo prazo são mais animadores. Há um aumento progressivo nas dimensões (valor Z) das estruturas cardíacas direitas na vida fetal nos casos submetidos a valvoplastia. O mesmo não se observa nos pacientes nos quais não se faz nada.
Observa-se nesses pacientes submetidos a nova valvoplastia pulmonar no período neonatal –geralmente acompanhada do implante de um stent ductal para prover uma fonte adicional de fluxo pulmonar até que haja um desenvolvimento mais completo do VD– a correção biventricular na maioria dos casos com 1, 2 ou até 3 anos de idade.
Nos pacientes com hipoplasia do VE e CIA muito restritiva ou septo intacto, os resultados da atriosseptostomia fetal são mais limitados. Há duas técnicas a serem empregadas: a atriosseptostomia com balão isolada e a que é acompanhada de implante de stent. Na primeira, mesmo que haja sucesso no procedimento (geralmente realizado entre a semana 30 e a 32 da gravidez), o tamanho da CIA criada não é suficientemente grande para garantir um estado clínico estável após o nascimento. Nestes pacientes deve-se realizar uma atriosseptostomia neonatal de urgência. Apesar disso, as taxas de mortalidade de Norwood ou híbrido são maiores comparadas com as dos pacientes sem CIA restritiva intrauterina. Embora o implante de stent no septo atrial intrauterino seja um procedimento mais efetivo para a aurícula esquerda, é muito difícil do ponto de vista técnico. Como vantagem potencial, a CIA criada com stent não diminui de tamanho com o passar do tempo, e teoricamente pode ser empregada em idades mais precoces da gravidez. Há pouca experiência mundial com o implante de stent e podemos encontrá-la especialmente em Toronto e Boston. O procedimento não é efetivo para abortar a arterialização das veias pulmonares e a linfangiectasia pulmonar em alguns casos.
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SOLACI: Qual o estado atual do implante percutâneo da valva pulmonar para os casos de pós-operatório tardio de tetralogia de Fallot que evoluem com insuficiência pulmonar e comprometimento da função do VD?
Dr. Pedra: Esta é uma área em franco desenvolvimento. Estes pacientes geralmente são operados com a utilização de parches transanulares, especialmente na América Latina. Portanto, o trato de saída do VD (TSVD) está alargado, o que constitui um desafio para ancorar uma válvula implantada por via percutânea nessa área. Há algumas técnicas inovadoras com dispositivos já aprovados para uso clínico e outras promissoras, ainda em caráter experimental.
Inicialmente um balão medidor é inflado no TSVD para averiguar sua capacidade de distensão e o potencial para compressão das coronárias. Em casos selecionados, com diâmetro distendido (na zona da cintura) entre 20-30 mm e comprimento suficiente para a ancoragem de um stent desnudo (CP, P 4014 ou Andra), faz-se um pré-stenting e em seguida se implanta uma válvula Melody (para diâmetros entre 20-24 mm) ou Sapien (para diâmetros de até 28-30 mm) dentro do stent convencional. Há outras técnicas menos convencionais para redução do TSVD. Uma delas é o implante de 2 stents de diâmetros distintos (um deles forrado) no trato de saída, seguido de oclusão da luz do stent forrado com plugs e implante da válvula Sapien no stent convencional maior, mas são empregados por poucos grupos.
As técnicas e dispositivos mais promissores estão relacionados com o uso de válvulas feitas de pericárdio porcino montadas dentro de stents autoexpansíveis. Como exemplo deste tipo de dispositivos temos a válvula Harmony (Medtronic, EUA) e a Venus P-Valve (Medtech, China), ambas utilizadas sob protocolos de investigações clínicas. Nos Estados Unidos, o implante da válvula Harmony foi factível e seguro em uma experiência inicial. A limitação é que a válvula tem somente um tamanho, o que reduz em demasia as indicações de implante. A experiência com a válvula Venus está mais avançada. Há mais tamanhos disponíveis (diâmetros e comprimentos) e, portanto, há menos limitações de seleção. A maior experiência com esta última válvula vem da China com resultados animadores em mais de 100 pacientes. A função da valva pulmonar é restaurada a curto prazo, as dimensões do VD diminuem na ressonância após 6-12 meses e os pacientes apresentam uma melhora da classe funcional. Fraturas na malha do stent podem ocorrer, mas as mesmas não pioram a função valvar. Um estudo internacional para obter o CE Mark está em curso neste momento com participação de nosso centro. Na América Latina começamos a experiência com esta válvula no Chile, seguido da Argentina e do Brasil. Fez-se o implante com sucesso em 13 pacientes. As válvulas estão funcionando bem no curto prazo com melhora dos sintomas dos pacientes.
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SOLACI: Seu centro tem um programa reconhecido na América Latina para o treinamento de residentes que querem fazer intervenções em cardiopatias congênitas e estruturais. Em sua opinião quais são os pré-requisitos e as qualidades necessárias para que se possa ter uma estreia bem-sucedida?
Dr. Pedra: Obrigado pela pergunta, que tem várias facetas. Eu sempre digo: as primeiras coisas em primeiro lugar. Não se deve chegar ao cume sem escalar as partes mais baixas de uma montanha. O treinamento básico é fundamental. Hoje em dia a maioria dos intervencionistas em cardiopatias congênitas vêm do mundo pediátrico. Portanto, é necessário treinar em pediatria e cardiologia pediátrica desde um princípio. Em nosso centro, o treinamento dentro do laboratório de hemodinâmica tarda 2 anos. Não me parece que seja possível alcançar uma capacitação razoável com menos tempo. Para fazer cardiopatias congênitas e (algumas) cardiopatias estruturais no adulto – que é uma especialidade em franca expansão –, o profissional pode vir do mundo pediátrico ou da cardiologia. O cardiologista intervencionista de adultos deve estar treinado em cardiopatias congênitas para se habilitar neste campo. O melhor cenário para estes (difíceis) pacientes é o trabalho em equipe com a participação do intervencionista pediátrico e de adultos treinados em cardiopatias congênitas e estruturais. Pessoalmente, não respaldo a atitude de alguns cirurgiões que, recentemente, começaram a se envolver neste campo do intervencionismo nas cardiopatias congênitas em crianças e adultos. Estes profissionais não estão habilitados para a realização destes procedimentos intervencionistas por via percutânea. Por outro lado, a participação do cirurgião nos procedimentos híbridos é fundamental, mas deve estar restrita à sua área de atuação, isto é, a cirurgia.
No que diz respeito às qualidades necessárias para um bom intervencionista em congênitos, poderia citar várias: foco, determinação, organização, persistência, disposição para o trabalho em grupo, sentido de antecipação, capacidade de planejamento e conhecimento profundo das cardiopatias congênitas, entre outras. A habilidade técnica e o talento nato são sobrevalorizados, em minha opinião. A técnica se adquire com o passar do tempo, com o treinamento e a determinação. Claro que há intervencionistas com capacidade técnica acima da média, como John Cheatham, Horst Sievert e Lee Benson. Mas é possível fazer maravilhas com uma boa técnica associada às qualidades citadas acima. Sempre repito o dito que aprendi com Lee Benson: “Keep it simple and safe”, ou seja, “the KISS approach”.
Para dar à Solaci uma visão geral, treinamos mais de 28 “fellows” de vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, Argentina, Uruguai, Peru, Venezuela, Colômbia e Itália desde o ano 2000. A grande maioria exerce funções de liderança em seus centros. Tenho sempre a preocupação de treinar profissionais que podem empregar seus conhecimentos em lugares que necessitam melhorias em nosso campo. Alegra-me saber que eles fazem a diferença para seus pacientes quando voltam ou vão a esses centros que estavam carentes de intervencionismo em congênitos. E é claro que minha equipe estará sempre à disposição para discutir casos e encontrar as melhores soluções.
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SOLACI: Como o senhor vê o futuro do intervencionismo nas cardiopatias congênitas?
Dr. Pedra: Esta é uma questão interessante. Outro dia estava comentando com meu amigo, o Dr. Alejandro Peirone, que estamos vivendo uma fase de relativo estancamento em nosso campo. Houve um “boom” inicial de técnicas e dispositivos inovadores em um período compreendido entre fins dos anos 90 e fins da década seguinte. Mas sempre há espaço para inovações e introdução de novas tecnologias. As válvulas de implante percutâneo serão aperfeiçoadas no curto prazo. Válvulas provenientes de tecidos do próprio paciente feitas com tecnologia de engenharia genética ajudarão a prolongar a durabilidade das mesmas e talvez viabilizar o implante em fetos. Dispositivos de implante percutâneo para monitoramento de pressões invasivas nas doenças como insuficiência cardíaca e hipertensão pulmonar serão mais utilizados. Dispositivos de implante percutâneo para assistência circulatória ou ventricular, especialmente em crianças muito doentes em terapia intensiva e em pacientes em pós-operatório tardio de Fontán são necessários em nossa especialidade. A terapia linfática já é uma realidade e será aperfeiçoada a curto prazo. Dispositivos de oclusão serão confeccionados a partir de uma malha absorvível. A terapia fetal se ampliará e incluirá implante de marca-passo para fetos com bloqueio. Enfim, acredito que no futuro faremos intervenções sem a necessidade de irradiação ionizante, provavelmente sob monitoramento da ressonância magnética com cateteres compatíveis, equipamentos menos ruidosos e mais ergonômicos e uma possibilidade infinita de obtenção de projeções e imagens.